A meritocracia é uma ilusão alimentada por exceções tão raras que diante da realidade evidente, se tornam até desprezíveis. A tal meritocracia deveria se basear em algum mérito para que o seu conceito faça algum sentido. A questão é que o tal mérito é sempre indefinível e passa longe de questões morais, muito menos das questões éticas. O discurso em si apenas tenta eliminar qualquer empatia para validar a idéia de que a miséria alheia é uma conseqüência justa, o que pode, na cabeça de certas pessoas, eliminar um provável peso na consciência de quem faz parte de uma sociedade desigual. Durante o século XX milhões e milhões de pessoas nasceram na pobreza, trabalharam muito a vida inteira e morreram pobres. A ilusão da meritocracia, que supostamente promove a justiça para quem tem mais mérito, apenas costuma ser visível para os mais abastados. Associada a isso, vemos um outro mito, o da mobilidade social. A ilusão da meritocracia e o mito da mobilidade social caminham juntos e são freqüentemente citados, até simultaneamente, mas sempre estão agarrados aos raros casos específicos onde uma excessão ilustra tais mitos e ilusões, mas jamais valida propriamente tal discurso.
Normalmente, pesquisas sobre mobilidade econômica intergeracional ignora o contexto geográfico da infância, incluindo a qualidade da vizinhança e o poder de compra dos habitantes de um determinado bairro. Supõe-se que a variação individual na mobilidade intergeracional é em parte atribuível às condições regionais e de bairro, mais notavelmente o acesso às escolas de alta qualidade. Percebe-se que a renda média do bairro tem quase metade do efeito sobre as futuras rendas do que a renda dos pais de um morador. Estima-se, nos EUA, que a renda familiar de toda a vida seja de R $ 635.000 dólares maior se as pessoas nascidas em um bairro pobre tivessem sido criadas em um bairro de classe média alta. Quando as rendas são ajustadas ao poder de compra regional, estes efeitos tornam-se ainda maiores.
Simplesmente nascer em um bairro pobre impossibilita qualquer chance de haver mobilidade social a uma pessoa, e isso se aplica por décadas. Uma das razões para isso, é que sob o ponto de vista econômico, poucas coisas importam tanto para o nosso destino como o bairro em que nascemos e crescemos, acredite se quiser. A relevância disso está na redução de possibilidades materiais de seus habitantes. "Nos Estados Unidos gostamos de pensar que qualquer pessoa pode ir para onde quiser com base apenas em seus talentos e habilidades. Mas isso é cada vez menos o que acontece. O talento e a habilidade se contraem quando as pessoas estão presas em ambientes segregados." afirmou Douglas Massey, pesquisador da Universidade de Princeton. O que, atualmente, podemos considerar como ambientes segregados? Os guetos das grandes cidade do mundo.
De acordo com um estudo publicado em 2014 pelos pesquisadores Douglas Massey, da Universidade de Princeton, e Jonathan Rothwell, do Instituto Brookings, o simples fato de se mudar de um bairro precário para um melhor, não é suficiente para mudanças significativas. A pesquisa aponta que o local específico da cidade onde uma pessoa passa os primeiros 16 anos de sua vida é determinante na renda que ela terá muitas décadas depois, mesmo que mude seu local de residência diversas vezes. Deixando de lado a relativização, o conteúdo do estudo mostra que a possibilidade de ascensão e mobilidade social é ínfima e desde muito cedo definida na vida de cada pessoa. A segregação social é evidente sob o capitalismo, e diante de tal estudo é impossível não haver o debate sobre equidade, pois uma discussão sobre propostas até polêmicas de vários países, incluindo alguns latino-americanos, de levar habitantes de bairros pobres para viver em regiões mais ricas das cidades, é mais racional do que se apegar ao mito da mobilidade social ou da meritocracia. À medida em que a distribuição de renda fica mais desigual, ocorre o mesmo com a distribuição dos bairros. A concentração da riqueza e da pobreza aumenta. Os bairros pobres se tornaram mais pobres e fica mais difícil escapar do status socioeconômico da pobreza.
Quem mora nos guetos do mundo sabe que as experiências vividas no local de nascimento também são uma herança da qual é difícil escapar, pois o bairro é o ponto crítico onde se bloqueiam as aspirações das pessoas para subir na vida. Toda cidade tem duas realidades bem distintas e a perspectiva de vida de uma pessoa que vive em uma determinada realidade é totalmente diferente de quem vive em outra. Isso não é difícil de se observar, já que os bairros pobres, em qualquer lugar do planeta, tendem a ter taxas mais altas de desordem social, crime e violência. As pesquisas mostram cada vez mais que a exposição a este tipo de violência não tem somente efeitos de curto prazo, mas também de longo prazo na saúde e na capacidade cognitiva de seus moradores. Tais aspectos são permanentes e não se apagarão das pessoas, mesmo quando crescerem. A vida nos bairros mais carentes implica frequentar escolas de má qualidade, ficar mais longe das oportunidades de trabalho e mais perto dos focos de violência de nossas cidades. Garantir aos jovens de classes sociais mais baixas a oportunidade de começar suas vidas em regiões mais ricas pode ter um grande impacto positivo em suas trajetórias de vida.
Acabar com a segregação social é um passo importante para que o simples fato de nascer em determinado bairro não se transforme em uma sentença. Após a Segunda Guerra, Londres construiu moradias subsidiadas em bairros ricos, o governo ajudou as pessoas a se mudar de regiões de muita pobreza para áreas de classe média e alta, onde poderiam ter fácil acesso às vantagens que as comunidades mais abastadas oferecem. Viu-se que findar a segregação por bairros, a mesma que faz com que a vida de cidadãos de diferentes classes econômicas acabem tomando direções opostas em suas vidas, é quebrar o ciclo social estabelecido.
Recentemente, a proposta do prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, de um programa piloto para levar habitantes pobres para viver em um conjunto de edifícios de um bairro rico causou polêmica na Colômbia. Perceba que as pessoas que defendem a ilusão da meritocracia e acreditam no mito da mobilidade social são exatamente as mesmas que se opõe veementemente aos projetos de mobilidade real. A Colômbia não foge a essa regra pois em Bogotá a proposta de Petro foi chamada por opositores de medida populista e classificada como uso pouco eficiente de recursos públicos escassos. Eles afirmam que estes recursos deveriam ser usados para melhorar as condições dos bairros pobres onde vive a maioria dos habitantes da capital colombiana. A ilusória meritocracia é sempre utilizada para criticar as medidas sociais usando a justificativa de que todos têm as mesmas oportunidades e que o mérito verdadeiro – o sucesso profissional, por exemplo – depende única e exclusivamente do esforço individual. Sabemos muito bem que a realidade não é tão simples quanto essa ilusão possa parecer.
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